Esse falatório todo sobre homens declarando, entre outras barbaridades, que certas mulheres simplesmente "merecem" ser estupradas de acordo com a roupa que usam ou de acordo com o modo como se comportam é, no mínimo, angustiante. Junto com o estupro vem um sentimento de que a vítima, que muitas vezes não reage por medo de morrer, consente o ato. E, além disso, a mulher sente culpa. Uma culpa totalmente sem propósito ou razão, uma culpa que parece estar no nosso DNA.
A mulher sente culpa porque acha que a roupa provocou o agressor. A mulher sente culpa porque ainda não nos livramos do pensamento de que uma mulher que teve relação sexual esteja desonrada. A mulher também se enche de medo de acharem que ela teve culpa. Ainda hoje, não somos tratadas com o devido respeito e, assim, muitos acham normal colocar a mulher em uma posição de subserviência e/ou inferioridade. Para muitos a mulher existe para servir ao homem e aos seus desejos.
Estou aqui escrevendo tudo isso porque passei por uma situação de abuso e durante muito tempo não falei sobre isso. A terapia me ajudou a trazer isso à tona e a trabalhar tudo isso em mim. Eu tive ajuda. E, na época, tive toda a ajuda dos meus pais que nunca me questionaram ou culparam por nada. Até porque não seria nada bom encarar alguém me culpando por atitudes de outros, além de eu ter que lidar com a culpa que minha mente me impingia.
Eu tinha 12 anos e fazia aulas de piano. Era um dia de prova. Saí cedo de casa e resolvi desviar-me um pouquinho do caminho pra comprar um sorvete. Devia ser umas 2 horas da tarde. Lembro-me como se fosse hoje a roupa que estava usando: uma calça jeans, tênis e uma camiseta com mangas, larguinha, branca com um desenho de uma menina loura na frente. Carregando minha pasta com as partituras em uma mão e na outra segurando meu sorvete, comecei a fazer o caminho de volta pra, enfim, chegar até o local da prova. Mais abaixo na rua, havia um prédio que estava em obras, havia uns andaimes na frente e muito material de construção perto da portaria. Ao passar em frente, um homem me chamou.
- Ei, menina!! Você poderia me ajudar?
Um pouco ressabiada, parei. Não andava pra frente e nem saia do lugar. Eu não sabia o que fazer. Quando achei que deveria continuar andando rumo a meu destino, ele repetiu:
- É rapidinho... Pode vir aqui me ajudar, por favor?
Bem, minha mãe sempre dizia pra mim, muitas e muitas vezes, quase como um mantra, que não deveria falar com estranhos, que não deveria abrir a porta de casa quando estivesse sozinha, que não deveria falar ao telefone com pessoas desconhecidas, muito menos responder perguntas e que não deveria aceitar nada de ninguém na rua ou entrar em qualquer carro que me oferecesse carona. Minha mãe trabalhava fora e, com 12 anos, eu ia e voltava das minhas atividades sozinha. Eram outros tempos, não havia tanto medo no ar como há hoje. E eu procurava respeitar todas as orientações de minha mãe, só que minha mãe nunca tinha me dito pra não ajudar as pessoas. Eu tinha 12 anos e havia alguém pedindo a minha ajuda.
Decidi me aproximar do homem. Era um mulato, com olhos azuis. Devia ter uns 35 anos. Estava limpo e vestia uma calça jeans e blusa polo azul clara. Perguntei a ele como poderia ajudá-lo e ele me explicou que a namorada dele morava naquele prédio e que eles estavam brigados. Disse que gostaria que eu fosse com ele e tocasse a campainha do apartamento, assim ela abriria a porta e ele poderia conversar com ela porque tudo o que ele mais queria era fazer as pazes. Eu acreditei na história. E, contrariando o frio na minha barriga e a dor repentina no meu estômago, entrei no prédio com ele. Subimos o primeiro andar e o segundo de escadas. E aí parei de subir e perguntei a ele, antes de ir para o terceiro andar, qual era o número do apartamento da namorada dele. E, nessa hora, ele me agarrou.
Durante segundos, ele tentou levantar minha blusa e enfiar as mãos por dentro e apertou minha bunda. E eu o empurrei e gritei.
- Pára!!!
Acho que ele não esperava que eu gritasse, que tivesse alguma reação, e me soltou, surpreso. Aproveitei essa hora e desci correndo as escadas com ele atrás de mim. Desci um andar com ele vindo atrás e consegui descer e chegar ao térreo quando ele me alcançou e agarrou de novo. Só que eu estava mais perto da rua e gritei outra vez. E ele me deixou ir. Saí de lá tremendo, olhando pra trás, pensando que não deveria ter saído do meu caminho pra comprar o sorvete, que deveria ter ido direto fazer a prova de piano, pensando que nada disso teria acontecido se eu não tivesse inventado de sair da rotina. Eu não entendia direito o que tinha acontecido, mas sabia que não era algo bom. Eu só sentia que tinha feito besteira ao acompanhar o cara. Eu só pensava que tinha culpa.
Fui andando e me acalmando, precisava fazer a prova. A verdade é que eu não sabia o que era estupro, não sabia o que aquele homem poderia ter feito comigo, não tinha a menor noção da gravidade da situação. Só sabia que alguma coisa não estava certa no modo como aquele homem me tocou e que senti nojo. Fiz minha prova e fui pra casa. Calada. Não conseguia dizer uma palavra.
Minha irmã logo percebeu que havia algo errado comigo assim que entrei em casa. Ficou atrás de mim pelo resto da tarde, perguntando o que eu tinha. Virou minha sombra. Sem me dar trégua ou sossego, dizia que eu estava escondendo alguma coisa. Seguia dizendo que algo não estava certo. E ela não sossegou até eu dizer a ela o que tinha acontecido. Lembro que ela me olhou com aquela cara dela de "Meu Deus..." e "isso não pode ficar assim" e, também, aquela cara que me dizia sempre "você é mesmo uma pamonha!". Continuei quieta. Eu já era quieta mesmo, só estava mais que o habitual. Não queria contar nada pros meus pais porque eu achava que EU tinha feito uma coisa errada. Aliás, eu achava que EU tinha feito várias coisas erradas. Tinha saído do meu caminho pra comprar sorvete. Tinha falado com um estranho. E tinha entrado em um prédio com esse estranho.
Só que a primeira coisa que minha irmã fez quando minha mãe e meu pai chegaram, foi contar pra eles. Na verdade, eu até fiquei surpresa de ninguém ter brigado comigo. E fiquei mais surpresa ainda ao ver como minha mãe ficou desorientada, desesperada até, e por ver o meu pai ficar andando de um lado pro outro como se fosse um leão enjaulado. Eles me fizeram 500 mil perguntas, tive que contar mil vezes tudo o que tinha acontecido, tive que descrever o homem até não aguentar mais lembrar da cara dele e meu pai me fez entrar no carro e ir até o prédio pra tentar encontrar o "desgraçado". Sem sucesso.
Uma semana depois, meu pai chegou em casa com um jornal embaixo do braço. Abriu em uma das páginas e me perguntou, apontando pra uma foto:
- Filha, é esse o homem que lhe chamou pra dentro do prédio?
Sim, era ele mesmo. Os olhos azuis não me deixariam confundir.
Meu pai fez cara de alívio. A manchete dizia: "Estuprador da leopoldina encontrado morto". A matéria dizia que o homem já vinha estuprando meninas naquela redondeza há mais de um mês.
Até hoje não sei porque fui poupada de um trauma maior. Até hoje agradeço a Deus por ter gritado. Por ter tido coragem de correr. Eu, uma garota quieta pacas, tive uma reação totalmente inesperada, até pra mim mesma. E agradeço a Deus por ter feito o homem simplesmente me deixar ir. Sim, porque se ele decidisse que eu seria sua próxima vítima, eu não poderia ter feito muita coisa contra um homem muito maior e mais forte que eu. Só agradeço a Deus por essa graça, pela proteção que tive naquele momento.
Por tudo isso, que me desculpem os loucos, mas as mulheres não tem culpa de atitudes tomadas com base em caráter destorcido, não temos culpa se um homem escolhe satisfazer seus desejos utilizando a força e a humilhação. Não, não somos culpadas por vocês ainda terem muito o que aprender, por serem seres precisando de tanta oração, luz e aprendizado. Não somos culpadas e não merecemos ser estupradas.