quinta-feira, 8 de maio de 2014

Brasil

Peço permissão a Renan Scheidegger para colocar seu texto aqui. Está muito difícil viver em um país com tantas desigualdades e com tanta permissividade. Um lugar onde os valores são trocados. Onde o certo parece sempre ser o otário da vez. Onde o errado ganha benefícios por ter errado, coitadinho. Sinto uma revolta grande, um sentimento de impotência diante de tanta imbecilidade. Parabéns a você, Renan, pelo belo texto! 


"Sou médico, tenho apenas 1 ano de formado e, por mais estranho ou ridículo que isso possa soar aos seus ouvidos, eu estou provavelmente passando por uma crise profissional. Mas tudo bem, isso também soa ridículo aos meus ouvidos.

Se hoje eu pudesse dar um conselho a quem está prestando vestibular para medicina, eu aconselharia que desistisse enquanto há tempo. A não ser que esteja disposto a levar uma vida de sacrifícios sem resultados e decepções diárias. Ser médico no Brasil não compensa. Ser médico no Brasil não é para qualquer um.

Trabalho em um posto de saúde na periferia da capital paulista, onde todos pensam haver os melhores recursos. Possuímos apenas 6 consultórios médicos (minúsculos, diga-se de passagem), mas somos responsáveis por aproximadamente 37 mil pessoas. Eu, como médico do Programa de Saúde da Família, tenho que prestar assistência a aproximadamente 4 mil pessoas (cerca de mil famílias). 
Faço atendimentos de clínica geral, pediatria, ginecologia e também realizo consultas de pré-natal. Mas o meu trabalho não se restringe apenas a consultas. O Ministério da Saúde determina que além de consultas, eu organize e execute ações educativas para a população, e ainda garanta consultas domiciliares àqueles pacientes que não podem se locomover até o posto de saúde. 
Mas como realizar um trabalho de qualidade quando não se tem estrutura para isso?

Comecei a trabalhar nessa unidade de saúde em março do ano passado e desde então vinha solicitando à administração alguns materiais básicos, como balança, balança pediátrica e régua antropométrica (aquela régua de madeira para medir o comprimento dos bebês). Após alguns longos meses de espera, enfiaram no meu consultório uma balança analógica (nova, tenho que dar o braço a torcer – e, sim, funcionava!), uma balança pediátrica enferrujada e uma régua antropométrica encardida com as marcações numéricas já bem apagadinhas.
Certa vez questionei à administração sobre a viatura da prefeitura que faria o transporte dos profissionais até a casa dos pacientes, uma vez que nem todos moram próximo ao posto de saúde; o que ouvi foram gargalhadas bem na minha cara e fui informado que deveria realizar as visitas domiciliares a pé ou usando o meu próprio carro. E é o que faço há pouco mais de 1 ano; vou às casas dos pacientes a pé mesmo... Ou vou com o meu próprio carro e o deixo estacionado lá, em uma área de risco, onde há tráfico de drogas e eventuais tiroteios, porque, é claro, a segurança nesse país também é uma fraude.

Uma vez, em um determinado mês no ano passado eu não cumpri as metas de visitas domiciliares e consultas exigidas pelo Ministério da Saúde, e fui duramente cobrado por isso. Argumentei com a administração, já que naquele mês eu havia sido convocado para muitas reuniões durante o expediente. Além disso, argumentei dizendo que é impossível prestar uma assistência minimamente decente e de qualidade com consultas de 15 minutos de duração, como é determinado; fora o fato de que é exigido que se faça, em média, visitas a 6 casas para avaliação geral de todos os membros da família em um período de 3 horas. Não existe qualidade nisso. A resposta que obtive foi “Não estamos falando de qualidade. Estamos falando de meta, estamos falando de números. Cumpra a meta.”

Essa demanda, não vem só por parte da administração. Essa cobrança vem também dos pacientes, que não conseguem entender que nós, funcionários desse sistema falido, somos tão vítimas do descaso quanto eles. Não há infraestrutura, não há funcionários suficientes e consequentemente não há consultas suficientes.
Já tive a porta do meu consultório chutada, já tive o meu consultório invadido por pacientes que não conseguiram vaga de consulta, já colocaram o dedo na minha cara, já tentaram me agredir, já fui chamado de preguiçoso, vagabundo, imprestável, filho da p*ta e tudo mais... E, sim, já fui ameaçado.

Eu estou cansado desse sistema falido. Cansado de acordar cedo, atender 33 pacientes em um único dia e ainda ouvir que se a população está desassistida, a culpa é minha. Cansado de ser fantoche propagandista desse governo imundo.

Ouvir a senhora Dilma Rousseff (que não teria competência para ser presidente sequer de uma associação de moradores), dizer hipocritamente que os médicos cubanos (coitados trazidos ao país sob um sistema de semi-escravidão em um golpe de maketing eleitoreiro) são mais atenciosos que os médicos brasileiros me enoja. Ao que me consta, ela não tratou o seu linfoma com um médico cubano ou em um hospital sucateado do SUS, mas no Hospital Sírio-Libanês com ótimos médicos brasileiros, os melhores especialistas desse país.

O Bolsa-família, sistema de compra de votos disfarçado de programa social vai receber aumento de 10% este ano, curiosamente no ano de eleições, onde a senhora Dilma se candidata à reeleição. E ironicamente essa notícia foi dada por nossa nada excelentíssima justamente no dia do trabalhador, ou seja, quem não trabalha vai receber aumento de salário no dia do trabalhador. Mas tudo bem, como ela mesma diz, estamos trazendo 36 milhões de brasileiros para cima da linha de pobreza extrema, diminuindo o índice de pobreza em 70% dentro de 11 anos e superando a meta da ONU. Tá ótimo! Educação e saúde de qualidade para quê? Batemos a meta e é isso que importa.

E o Bolsa-recomeço? Iniciativa bonita desse governo tão solidário, não fosse um tiro no pé, assumindo sua incompetência em garantir reabilitação aos dependentes químicos. Então o jeito que encontraram foi pagar reabilitação aos usuários de crack em clínicas de reabilitação privadas, a um valor mensal de 1.350 reais... E os meus agentes de saúde trabalhando arduamente para receber a metade disso no final do mês.

Melhor ainda é o Auxilio-reclusão, onde a família de um detento recebe 682 reais por mês. Já ouvi pacientes falando que acham até bom os maridos estarem presos, porque recebem uma grana todo mês.

Então basicamente aqui, funciona assim:
Tem uma penca de filhos e não quer trabalhar? Tudo bem, nós garantimos o seu sustento, pois temos dinheiro para isso.
Se viciou em drogas e quer se recuperar? Bom, nós não temos competência para isso, mas temos dinheiro, então pagamos quem tem competência para fazer isso por nós.
Cometeu crime e foi preso? Tudo bem, essas coisas acontecem. A gente garante o sustento da sua família. Não se preocupe, também temos dinheiro pra isso.
Quer ser um sujeito decente e ganhar dinheiro honestamente? Bom... Aí... Aí a gente faz assim: você vem, obedece as nossas regras direitinho e tem que trabalhar bastante para receber o salário. Mas a gente desconta uma porcentagem da sua grana todo mês, viu? Porque afinal de contas a gente tem todos esses programas sociais pra dar conta e alguém tem que financiar isso, né? Ah! E tem que cumprir as metas, viu?! Se não a gente briga... E não garantimos infraestrutura ou qualquer condição de trabalho, porque a gente não gasta dinheiro com essas futilidades... E no início do ano tem o Imposto de Renda... Ah! E de vez em quando a dona Dilma vai na TV falar mal de vocês.

Não está fácil... Me sinto como se precisasse apagar um incêndio tendo apenas minha boca, um pouco de saliva e umas cuspidinhas fracas.
Mas tudo bem, daqui a 1 mês tem Copa do Mundo. O Brasil é lindo, Deus é brasileiro e já já a gente esquece tudo isso, né?"

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