quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Alfabetização



Lembro muito nitidamente do dia que minha irmã voltou da escola, depois de levar a Duda (sua filha mais velha e hoje com 15 anos) para o primeiro dia de aula da alfabetização. Ela entrou em casa com os olhos marejados, emocionada mesmo e eu não entendi direito o porquê. Era mais um ano escolar como os tantos que a filha iria encarar na vida. Além disso, não era o primeiro dia na escola - coisa que, na minha cabeça de quem nem sonhava em ter filhos - significaria muito mais. A cena dela sentando a mesa na hora do almoço e chorando ficou viva na minha memória sem que eu soubesse a razão. Hoje eu sei.

Miguel estava nervoso, inseguro até, pra ir à escola e iniciar esse ano. Um ano com muitas novidades. Miguel não tem irmãos mais velhos pra "tocar o terror" na vida dele, mas tem a Rafaela. E ela se esmerou ao máximo pra falar que "acabou a molezinha do jardim da infância", "agora você vai brincar pouquinho", "se prepara que vão começar as provas", enfim... Miguel sabe que esse ano tem uma importância maior na vida dele, mesmo que não tenha a menor noção do quanto aprender a ler e a escrever será libertador, o quanto isso aumenta suas possibilidades de vida e amplia seus horizontes. 

Tentando fazer esse dia de ida à escola parecer como outro dia qualquer pra ele, tentando muito não colocar pra fora toda a minha ansiedade e preocupação com a nova e importante fase da vida do meu filho, fomos pra escola. No caminho, Miguel disse que não sabia quem seria a sua professora ou onde seria sua sala de aula, suas preocupações mais importantes naquele momento. Disse a ele que hoje eu iria entrar com ele na escola e só o deixaria quando estivesse na nova sala de aula em companhia da nova professora. Miguel também manifestou medo de "não conseguir escrever o que a professora mandar". Acho que na cabecinha dele, hoje seria o dia de aprender a ler e a escrever. Ele não entende isso como um longo processo. Um processo que iniciou há muito tempo e que ainda vai continuar. Pra um menino de 5 anos, difícil existir outros 300 dias. Pra ele, existe o hoje, a urgência do agora, o imediatismo de seu querer. 

Assim que chegamos  à escola e Miguel viu alguns de seus amigos, já disse pra mim que eu poderia ir pra casa. Entretanto, eu não o fiz. Fiquei ali, de longe, olhando meu filho carregando sua mochila nas costas (não quis mais a mochila de rodinhas), indo entrar na fila que seria conduzida pela professora até a nova sala de aula. Confesso que meu coração batia forte. Com certeza, mais forte que o dele. E senti uma emoção enorme tomar conta de mim. Porque alí, na minha frente, vi meu filho dar um passo gigante pro seu futuro e o vi fazendo isso firme. 

Esperei a professora dirigir-se à sala de aula pra ver onde meu filho estudaria durante todo esse ano. Chegando lá, quis ir até a porta da sala. E observei Miguel escolher uma carteira. Uma carteira grande. Vi meu filho tirar a mochila das costas e ajeitá-la. Vi Miguel olhando pro Guilherme, amigo que veio sentar-se ao seu lado. Olhinhos cúmplices de dois amigos que viverão uma das maiores aventuras de suas vidas lado a lado. Pelo menos por hoje. E, naquele momento, toda a minha ansiedade por tudo o que meu filho viverá transformou-se em um bolo na minha garganta. E eu não estava mais conseguindo conter minhas lágrimas. Uma das mães da turma, a Alessandra, talvez pressentindo o turbilhão que se passava dentro de mim e não sendo uma mãe de primeira viagem, falou pra mim:

- "Você é manteiga derretida que nem eu, é??"

Só consegui responder, sem piscar, que sim. E saí de lá o mais rápido que pude porque a vontade que me deu foi me jogar nos braços da Alessandra e me sentir acolhida por alguém que entenderia minha emoção e ficar quietinha dentro daquele abraço  por uns 20 minutos,  chorando sem vergonha. Logicamente, a razão falou mais alto e não fiz isso. 

Eu sei que muitos vão falar que sou idiota ao ler esse texto. Muitos vão dizer que estou fazendo novela mexicana com uma situação tão corriqueira. Vão dizer que hoje foi um dia como outro qualquer pro Miguel, que não há motivo pra tanta emoção. Eu mesma pensei isso 10 anos atrás olhando pro rosto choroso da minha irmã. Talvez seja mesmo uma emoção despropositada, um choro bobo, uma ansiedade besta. Drama. Talvez eu esteja querendo drama. Drama ou não, o que sinto hoje não é muito diferente do que senti quando deixei Miguel na creche, com 4 meses, pela primeira vez. Também não é muito diferente do dia em que ele não soltava minha mão na adaptação à escola. Não é diferente do dia em que o deixei entrar na escola sozinho e fiquei só no portão, vigiando seus passos e esperando seu "tchau" lá de cima. E sei que não será diferente de quando ele for pra uma escola nova. Quando ele fizer vestibular ou de quando ele entrar na universidade. E não será diferente do que sentirei em seu primeiro dia em qualquer novo emprego. 

Hoje, posso dizer uma coisa sinceramente e com toda certeza do mundo: entendo minha irmã, de todo coração. Entendo sua apreensão, seus medos. Entendo sua cara emocionada ao deixar sua filhota ainda tão pequena sentada em uma sala de aula "não enfeitadinha" pro jardim de infância, uma sala de aula MESMO. Entendo que ela tenha pensado naquele instante na sua enorme impotência. E entendo que ela tenha pensado em como é prepotente por achar, em suas ilusões sem sentido, que sempre estaria ao lado da filha pra protegê-la de tudo, de qualquer coisa.  Hoje entendo que quando meu coração aperta e fica miudinho, tão miudo  que chega a doer, o único jeito que tenho de afrouxá-lo é chorando. Foi isso o que aconteceu comigo hoje. Não chorei jogada nos braços da Alessandra. Não tive coragem pra tanto. Mas chorei andando pela calçada da escola, entrando no meu carro, chegando em casa. E estou chorando agora de novo, colocando tudo isso pra fora. E meu coração já está se sentindo melhor. Está, sim. 

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