quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Peteleco

Jô e eu (no meio)
5 anos

Jô, em pé de saia lilás e eu abaixada
6 anos

8 anos (depois de um surto no qual pelei meu cabelo)

Eu abaixada com as mãos no colo da Jô - 16 anos


Toda criança tem um amigo inseparável. Pode ser que o amigo inseparável varie de tempos em tempos, mas há sempre um. No meu caso, eu tive uma amiga de infância que me acompanhou do jardim até a universidade. Estudávamos na mesma escola, na mesma sala de aula, fazíamos ballet juntas e inglês também (até ela desistir do inglês). Enfim, onde eu estava, provavelmente a Jô estaria e vice-versa. 

Eu sempre tive amigos que eram muito diferentes de mim. Lógico, com afinidades mas com jeito muito diferente. Não sei se inconscientemete eu já sabia que aprendo mais com o diferente que com o semelhante. Mas eu e a Jô éramos unha e carne e a gente ria muito uma da outra e uma com a outra. Eu era boa em umas matérias e ela em outras e a gente se ajudava. A mãe dela nos dava carona em seu fusca pra cima e pra baixo porque não trabalhava. Minha mãe estava sempre na rua porque trabalhava fora. Ela me sacaneava muito - principalmente quando se juntava com a minha irmã - por causa do meu jeito que ela dizia ser "intelectual". Eu gostava de passar horas quieta na minha cama lendo todo tipo de livro enquanto ela sempre foi mais agitada. Enfim, entrava ano e saía ano, eu e Jô seguíamos juntas. 

Nós devíamos ter uns 11 anos e não me lembro o motivo, mas estávamos sentadas juntas na sala de aula esperando o professor que estava atrasado. Como a gente sempre tinha assunto de sobra, estávamos sempre conversando. Ainda mais sem professor em sala. Aí, uma inspetora nova na escola, não consigo me lembrar do nome da mulher, entrou em sala de aula pedindo a todos silêncio. Ela ficou andando de um lado pro outro, feito cão de guarda, tomando conta dos alunos enquanto a professora não chegava. Passaram-se 5, 10 minutos e , lógico, o silêncio foi se tornando cada vez mais difícil de ser mantido. Como fazer 30 alunos ficarem calados, sentados em suas carteiras, por mais de 10 minutos sem dar-lhes nenhuma atividade? Então, não é difícil de deduzir que, depois de 10 minutos feito estátuas, Jô e eu começamos a conversar baixinho. 

Estávamos mesmo conversando baixinho, mas como estávamos sentadas na primeira  fileira, a diaba nos viu e veio em nossa direção. Sem mais nem menos, sem dó e nem piedade, nada falou. Apenas me deu um peteleco na cabeça e outro na cabeça da Jô. 

- Eu não disse pra ficarem calados?, rosnou a supervisora. 

Eu olhei incrédula pra ela. A Jõ olhava pra minha cara com ódio saindo pelo olho. Pensei até que ela fosse falar alguma coisa. Engulimos nosso orgulho e não falamos nada. A sala de aula inteira calou-se, obviamente com medo de levar petelecos na frente de todo mundo. Fiquei com a dor do peteleco e a vergonha o dia inteiro. E também uma vontade dentro do peito de ter feito alguma coisa, de ter falado alguma coisa. 

Os tempos, definitivamente, eram outros. Imagina uma cena dessas nos dias de hoje? Não, nem dá pra imaginar. Parece piada.

Quando minha mãe chegou em casa à noite, contei pra ela o que tinha acontecido. Eu era criança mas sabia, mesmo que ninguém tivesse me dito, que aquela supervisora doida não poderia ter feito aquilo comigo. Nem com a Jô. Minha mãe ficou raivosa e hoje imagino o que ela não sentiu quando contei do peteleco. A raiva era maior porque, por algum motivo importante do trabalho, ela não poderia ir na escola no dia seguinte pra falar do ocorrido na coordenação. Ela teria que esperar mais outro dia até resolver a questão. Em compensação, a Jô me falou que a mãe dela iria até a escola no dia seguinte. 

A mãe da Jô, Dona Marlene, ficava sempre na porta da escola. Nesse dia ela não entrou junto com a Jô. Eu estava ansiosa, querendo ver a mãe da Jô entrando na escola e se dirigindo à secretaria pra reclamar. Afinal de contas, meu rosto ficava vermelho só de lembrar da dor do peteleco. Dor na minha cabeça e de humilhação. Chegou a hora de formarmos para irmos pra sala de aula com o professor. Era nessa hora também que todos os supervisores ficavam pela quadra pra observar o grande número de alunos. E foi estrategicamente nessa hora que Dona Marlene entrou elegantemente portão adentro e se aproximou da quadra. Não pudemos ouvir, mas vimos ela falar com a coordenadora. Ela estava pedindo que chamassem a tal da supervisora porque precisava falar com ela. Era urgente. 

Quando a supervisora se aproximou dela, ficando frente a frente, disse:

- Pois não, no que posso ajudá-la?

A mãe da Jô, não abriu a boca. Levantou a mão e pimba! Tacou um peteleco na cabeça da supervisora na frente de toda a minha turma! A supervisora se fez de fragilzinha e falou:

- Ai, ai!! Meu Deus, o que é isso????

Dona Marlene, explicou:

- O que é isso? Isso é um peteleco! O mesmo que você deu na cabeça da minha filha ontem! Isso é pra você aprender a não dar peteleco na cabeça do filho dos outros porque se você fizer isso novamente eu vou voltar aqui na escola. Entendeu?

A mãe da Jô virou as costas pra supervisora que estava com a mão na testa, local onde foi dado o peteleco, e saiu pela escola soberana, cabeça erguida, como se estivesse mais leve, com a sensação do dever cumprido. Eu? Estava exultante de felicidade. Havia sido vingada. Mal via a hora de chegar em casa e telefonar pro trabalho da minha mãe pra contar o que havia acontecido. Definitivamente, minha mãe não precisaria chegar atrasada no trabalho no dia seguinte pra ir até a escola reclamar. Dona Marlene já tinha feito o que tinha que fazer. 

Hoje, todas as vezes que sinto vontade de dar um peteleco em alguém, querendo vingar uma injustiça ou covardia, lembro-me daquele dia. Lembro da cara de idiota da supervisora na hora que recebeu o peteleco inesperado. Lembro do dia em que fui vingada pela mãe da Jô. E fico rindo sozinha. 

Realmente, eram outros tempos...


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