terça-feira, 10 de março de 2015

O menino

Todo semestre algumas pessoas me procuram porque querem estudar inglês e não tem condições de pagar uma boa escola de idiomas. Algumas dessas pessoas até poderiam pagar um curso mais barato, mas querem dar qualidade aos filhos e, assim sendo, procuram o CCAA. Isso me deixa muito feliz, mas também me coloca diversas vezes de cara com uma verdade triste: a de querer estudar e não poder. Enfim, procuro saber da vida dessas pessoas, faço uma entrevista porque é necessário saber de tudo, da história, da vontade de estudar, do valor que a família realmente dá pra educação. Muitas vezes o aluno em potencial quer estudar em um primeiro momento, até porque ele não tem ideia das obrigações e responsabilidades a mais que terá, depois, envolvido pela realidade de seu dia-a-dia, acaba desistindo. 

Dos muitos alunos que recebo nessas condições, muito poucos chegam até o fim. A maior parte larga no meio do caminho, mesmo quando faço uma triagem forte no início. Pode parecer crueldade da minha parte, mas não dá pra ajudar alguém que quer muito, mas que, por exemplo, não tem comida em casa. O aprendizado ficará comprometido. Não tenho como ajudar pessoas que moram longe da escola e não tem dinheiro pra passagem também, porque isso fará com que o aluno não seja assíduo e isso vai prejudicar o aprendizado. Não tenho como ajudar adolescentes que tem a obrigação de cuidar de irmãos menores, porque também acabarão faltando às aulas. Os pais, por sua vez, precisam colocar a educação dessas crianças como prioridade, eles precisam dar valor à oportunidade e dar condições para que o aluno estude e frequente as aulas. Algumas vezes, o aluno que quer estudar não preenche esses pré-requisitos e fica frustrado. É compreensível. Mas eu preciso ser prática e até um pouco fria na hora de analisar tudo isso e escolher.

Nunca dou bolsa integral, acredito que o aluno valoriza mais quando paga alguma coisa, mesmo sendo um valor simbólico, algo que caiba no seu bolso. Não há diferença de tratamento para nenhum dos alunos bolsistas, eles são cobrados como qualquer outro aluno. Tem as mesmas obrigações e deveres. A única diferença é que não podem ter mais de 6 faltas. Os professores não sabem se tem alunos bolsistas ou não em seus grupos. A sala de aula é um local democrático e todos recebem a mesma atenção. Os bolsistas se enturmam com pessoas de realidades totalmente diferente da deles. E isso é ótimo: tanto pra quem tem muito quanto pra quem não tem. Meu público é de classe média pra alta e é de grande valor essa inclusão social. É bacana ver o aluno que tem tudo, todas as facilidades do mundo, começar a conhecer pessoas com vida tão distinta. É bom pra que deem valor à vida que tem. Por outro lado, quem tem tão pouco, começa a enxergar que a vida não se restringe ao mundinho de sua comunidade, que é muito maior e que sonhar com condições melhores pode ser o início pra uma mudança de vida. 

No início de 2014, um menino veio até o CCAA. Depois de toda essa conversa, de todo o processo pra escolha, fez sua matrícula. O desconto que dei à família permitiu que os pais pudessem arcar com as mensalidades. Esse menino mostrou-se inteligente, sagaz, vivo. Vinha às aulas com o uniforme da escola pública, mas já estava ambientado e seu desempenho era muito bom. Só que esse ano o pai ficou desempregado e a mãe ligou pra trancar a matrícula porque não teria como arcar com o custeio dos livros. Comovida, Fernandinha (a secretária) veio falar comigo. Fiquei com muita pena de ver aquele menino cheio de potencial, interromper seus estudos. A vida não é mole pra algumas pessoas. Não mesmo. Só que nessas horas a cabeça da gente tem que pensar rápido, no mesmo ritmo do coração. E pedi pra Fernandinha ligar pra mãe dele pra dizer que nós daríamos os livros pra ele. Esse semestre. Até que a situação familiar se reestabelecesse. Felicíssima, a mãe agradeceu muito. 

Assim, chegou o dia da aula e o menino veio até o balcão pra buscar seu material. Andréa o atendeu, conversou com ele pra que não faltasse mais, já que tinha perdido as duas primeiras aulas do semestre e disse que o acompanharia até a sala de aula. No caminho, o menino perguntou por mim. Disse pra Andrea que gostaria de falar comigo. Surpresa, Andrea o trouxe até a minha sala. Cumprimentei o menino e disse que estava feliz por ele estar ali. E aí aquele menino magrinho, de apenas 11 anos, vindo direto da escola, com uma carinha de cansado, entrou na minha sala e disse:

- Vim aqui agradecer pelos livros.

E estendendo a mão como um homem adulto em minha direção para que eu a apertasse, me disse:

- Muito obrigado. 

Andrea, atrás do menino já estava chorando. Eu, mal conseguia segurar minha emoção, não consegui levantar e rodear minha mesa, como gostaria de ter feito, pra dar um abraço apertado no menino. Fiquei olhando pra ele, sentindo meus olhos arderem. Disse a ele que não havia porque agradecer e que maior agradecimento seria que ele continuasse estudando. O menino virou-se e foi pra sua sala de aula. 

Sabe, eu não estava esperando aquele agradecimento. Muitas vezes ajudamos e não temos um agradecimento, nada. Eu não faço esperando isso também. Ajudamos porque faz bem ao nosso coração, abrimos uma porta pra tentar mudar a vida de uma pessoa, se essa pessoa vai entrar e aproveitar a chance, já não podemos dizer. Mas confesso que foi lindo ver o menino de 11 anos apertar minha mão, seguro do que deveria fazer. Com coragem pra entrar sozinho em minha sala e me olhar nos olhos e agradecer. 

Ganhei a vida com aquele aperto de mão. Fez valer tudo. Todas as vezes que tentei ensinar pra quem não queria aprender. Todas as vezes que tentei empurrar alguém adiante que não queria ser empurrado. Todas as vezes que tentei mostrar que há algo melhor do outro lado dos muros da existência de alguém e esse alguém não quis enxergar. O aperto de mão do menino foi combustível pra eu ir mais longe. Pra eu continuar ajudando. Pra eu continuar na luta. E não desistir de acreditar que tem jeito pro mundo.

No fundo, eu é que deveria agradecer.

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