quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Olha o trem !



Ainda pouco minha irmã postou no facebook que estava rezando pela qualidade da maquiagem dela, uma vez que a pobrezinha estava em um ônibus lotado, rumo a Campo Grande pra trabalhar, num calor de fazer medo. Quem olha assim pra gente não pode imaginar que estas mulheres cheirosas e bem vestidas que, sim, gostam de bons tratos e conforto enfrentam ônibus se preciso for. E mais: já enfrentamos coisa pior.

Já falei que somos da Leopoldina, área pobre do subúrbio do Rio. Hoje mais pobre que na época em que lá moramos, é verdade, mas Olaria era um lugar pobre com uma dignidade que não sei se ainda resta por lá atualmente. Quando vou ao bairro, por qualquer razão, tenho dificuldade em reconhecer o lugar da minha infância. Está tudo muito mais feio e degradado, como a maior parte dos lugares que são cercados por comunidades. Fato é que fomos muito felizes brincando na rua com nossos vizinhos. Época em que não tínhamos medo de andar soltas e que tiroteio era coisa de filme.

Eu e minha irmã nunca tivemos problemas com condução porque a escola ficava distante de nossa casa uns 15 minutos de caminhada apenas, assim como a academia. Pra ir ao CCAA precisávamos caminhar mais ou menos meia hora ou pegar um ônibus. Só que depois que fomos estudar na Tijuca (Instituto Guanabara) a coisa mudou pra pior. Pra ir estava tudo certo porque minha mãe levava a gente de carro antes de ir pro trabalho. Mas na volta... Só Jesus!

Na volta, a gente não encarava ônibus não... Era o trem mesmo. E posso garantir que perto do trem, o ônibus é o melhor dos transportes. Primeiro porque quando a aula acabava, a gente tinha que sair correndo já que o trem tem o horário certo (se tudo estiver correndo bem), e entre o fim da última aula e a hora do trem, tínhamos, no máximo, uns 10 minutos. Resultado: eu e minha irmã saíamos correndo que nem loucas carregando nossas mochilas pesadas, descendo uma rua bem comprida, pra então atravessar a Radial Oeste e subir e descer umas escadas da passarela até estarmos na plataforma pra esperar o bendito trem. Lembro que em uma dessas vezes o desespero foi tão grande que eu, lesada que só, gritei: "olha o trem!" e começamos a correr ainda mais rápido. Tão rápido que minha irmã tropeçou e se espatifou no chão. A pobrezinha ficou deitada lá em cima da passarela, de barriga pra baixo, totalmente esticada. Não sei até hoje se demorou a levantar porque teve uns instantes de ausência ou se porque estava morrendo de vergonha e raiva de mim, afinal, não era nosso trem...

Estando na plataforma, quando o trem estava no horário era uma maravilha: em poucos minutos estávamos em Olaria. Só que nem sempre era assim. Esse povo que depende de trem sofre. Como atrasam! Enfim, como costumo dizer, tem dia que é de noite, e nos dias em que o trem não estava pontual era um inferno. Se você já andou de trem sabe que a plataforma parece ser um dos lugares preferidos por religiosos pra pregarem o nome de Jesus. Tem sempre alguém com uma Bíblia debaixo do braço falando sozinho, pregando para fiéis invisíveis, rezando com toda força e em alto volume. Até aí, beleza. Pior mesmo era quando eles cismavam com a sua cara e gritavam, apontando o dedo em sua direção exatamente pro seu nariz: "Você, mulher pecadora!!!! Você que não sabe o que é Jesus!!!" Meu Deus... Eu só pensava que poderia existir um buraco no chão pra eu sumir ou que, talvez, passar a esperar o trem encolhida embaixo do banco não fosse tão má ideia assim...

Dentro do trem existem os mais variados tipos de vendedores ambulantes. Na hora em que eu pegava o trem, ele, normalmente, não estava cheio, então íamos sentadas pra casa. De repente, entrava um vendedor de bacias. Os vendedores de bacias de trem, não satisfeitos em falar de seu produto, fazem também demonstrações. A coisa acontecia mais ou menos assim: você estava lá, sentadinha com seus pensamentos já dentro de casa, pensando em tomar um banho gostoso, quando o vendedor começava a arremessar as bacias pra todo lado gritando: "Bacias inquebrável que não quebra!! Quem vai querer!! Bacias inquebrável que não quebra ! Tá barato!!" Depois, o vendedor ia passando e recolhia todas as bacias espalhadas ao longo do vagão pra começar tudo de novo minutos depois. 

Muito comum também era o vendedor de doces. Esse não saia tacando as iguarias que vendia, obviamente, mas também gritava: "Canudinhos caseiro feito em casa!!" E não pense você que era possível rir disso tudo. Estando em um trem, nem pense em rir desses acontecimentos bizarros porque a coisa pode ficar muito feia pro seu lado. Eu aprendi a rir internamente. Aliás, eu gargalhava sem mexer o rosto ou emitir sons e olha que quem me conhece sabe que não rir alto é quase um milagre pra mim. Mas a necessidade faz coisas que até Deus duvida e eu conseguia essa proeza de rir em pensamentos. Não sei se ria do grotesco da cena ou de desespero.

Pra terminar, outra coisa que era revoltante era quando eu estava calmamente pensando que estava a caminho de casa, pensando que, graças a Deus, o trem tinha passado na hora e que eu iria, em breve, matar a fome que estava me matando quando, do nada, o trem parava. Simples assim. Parava e começava a ir e voltar de estação em estação. Ninguém pra dar satisfação, ninguém pra explicar nada. E você lá, com o estômago nas costas, doida pra comer seu arroz com feijão, indo e voltando, para frente e para trás. Isso é que era sacanagem. E eu, nesse ponto, já me pegava considerando a idéia de comer os tais dos "canudinhos caseiros feitos em casa". Só que, é claro, nessa hora todos os vendedores sumiam.

Hoje, não ando mais de trem. E de ônibus, só quando vou ao centro da cidade. Tem gente que diz que não consegue me imaginar dentro de um ônibus lotado, tem gente que não acredita nem que eu use chinelo. À essas pessoas eu digo: as aparências enganam, meu bem. Essa patricinha aqui já pegou muito ônibus lotado e já perdeu muito a hora do almoço por causa do famigerado trem. E estou aqui, Vivinha da Silva. E cheia de histórias pra contar. 

2 comentários:

  1. Muito engraçado, adorei!! Dá para imaginar tudo direitinho. Beijo

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    1. Ana, eu também fico rindo só de lembrar... Beijos pra você também!!

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